14 fevereiro 2006

A Insustentável Leveza da Culpa

Uma pessoa normal, tendo chegado ontem da Bahia; tendo sido recebido por alguém relativamente especial, e, sobretudo, sendo vítima e algoz de carinhos tão bons (de uma maneira vago-específica, confesso, mas bons) e lendo "A Insustentável Leveza do Ser", teria muitas coisas pra escrever. Mas Brecht dizia, num poema, que vivia dividido entre o deslumbre com a natureza e a revolta com os discursos do pintor (Hitler); mas só o segundo o fazia sentar-se à escrivaninha.
Meu problema não é exatamente esse, mas minhas angústias pessoais e egoístas são sempre temas de textos. Não bastasse essa angústia, meus problemas sociais e com política são graves.
Digo isso porque lendo "A Insustentável Leveza do Ser" logo pela manhã, de ressaca e com aquela sede típica, a coisa que mais me chamou atenção no romance foi o pano de fundo histórico, passado num país sob domínio russo em época de guerra fria. O romance é lindo, os personagens fantásticos, as divagações sobre amor, paixão, fidelidade... tudo lindo. Mas a revolta do autor com o regime comunista é excitante do ponto de vista intelectual.
Não tenho simpatia alguma pelo regime comunista de Stalin, que na verdade não considero comunista. Mantenho minhas posições socialistas e acho que o comunismo/socialismo é o único caminho para que todos possam viver bem. Acontece que o autor, sob a máscara de seu personagem Tomas, fez uma reflexão interessante, que me deixou perturbado:
A certa altura, Tomas começa a refletir sobre o personagem Édipo, da peça de Sófocles, que ao se saber culpado pelas desgraças com seus súditos, arranca os próprios olhos (os detalhes da peça que li há tempos e achei fantástica, merecem outro texto, noutro dia). Então ele diz que os comunistas, ao verem as condenações absurdas do regime soviético, as dezenas de injustiças, se lamentavam dizendo não serem culpados... blábláblá...
Então começa a reflexão sobre culpa (o livro todo é assim, cheio de divagação filosófica). As pessoas que leram o texto acham que Tomas insinuou que os comunistas deveriam arrancar os próprios olhos ao se verem em situação tão constrangedora como a morte de inocentes, pois o Édipo também não tinha participação na sua desgraça e na de seus súditos. Embora preguem ideais bonitos, considerando o comunismo um 'caminho para o paraíso', eles deveriam se sentir culpados e se punirem, mesmo que seus ideais tivessem um fim bom como a igualdade entre as pessoas.
Então me vi num mato sem cachorro.
Como paralelamente estou lendo os escritos políticos do Gramsci, absolutamente comunista, e eu já tinha fortes raízes comunistas, fiquei pensando sobre as injustiças de Stalin, Fidel e outros comunistas. Será que esses erros tornam o comunismo algo errado? Será que o fato de cometerem injustiças sob a égide do comunismo torna os ideais de igualdade algo errado? Se fosse assim, o que seria do Cristianismo que perpetuou tanta desgraça em tempos Medievais e Modernos?
Todo posicionamento, todo engajamento, gera a possibilidade de injustiças e erros. Não é fato de terem errado no passado que torna algo abominável. Acreditar no socialismo como forma de possibilidade de igualdade e fim de injustiças sociais é necessário, mas nada justifica a morte de inocentes. Não consigo imaginar um comunista que não seja também um humanista. Mesmo Gramsci sendo da leva armada do comunismo, creio que nada justifica a guerra nem a morte.
É preciso acreditar na igualdade, liberdade e justiça. Esse tem que ser a bandeira da esquerda e do socialismo. Nada justifica a morte, nunca.
Enquanto eles levantarem armas, iremos de rosa na mão. Isso é comunismo. Isso é humanismo.
Mas o livro continua sendo bom... até porque, é um romance, não um tratado político...

Sem comentários: