26 setembro 2006

Eu e Deus - algumas considerações

É bem capaz que ainda criança eu tivesse problema com religiões. Nunca consegui estipular os limites do que hoje concebo como laico e o religioso. Dentro e fora da igreja as pessoas são sempre... pessoas.
Minha família é protestante, daí eu ter freqüentado diversas igrejas que se denominam 'evangélicas'. Cheguei a ir nalgumas missas com minha primeira namorada, que era católica; tempos depois freqüentei a Universal com essa mesma namorada (tudo isso num intervalo de 6 meses). Em ambas alguns excessos me causavam espanto: gritaria, lágrimas quase que desesperadas... muita confusão. O pouco de fé consciente que eu tinha se dava em silêncio, em paz, como quando criança eu pedia pra Deus proteger minha mãe quase todos os dias, e chorava sozinho ao imaginar que ela podia morrer; pouco depois ia brincar. Se ela se atrasava, a agonia começava novamente - o que prova que lembramos de Deus quando temos medo do mundo.
Meus primeiros 'problemas' com Deus se deram ao conhecer a Injustiça. Uma tia minha trabalhava na casa dum pastor cuja esposa poderia ser chamada de pilantra, e ainda seria um eufemismo. Aos 10 anos fiz um poema que falava sobre homens maltratando animais, e eu perguntava o porquê disso existir, como Deus deixava isso acontecer. Tempos depois conheci na escola a Inquisição e o Holocausto, e por um bom tempo cri que Deus e a Inquisição não podiam existir num mesmo mundo. Da Inquisição e do Holocausto eu tive certeza; de Deus eu já não tinha mais.Durante muito tempo vivi assim. Mas ainda havia aquilo: quando sentia medo do mundo, lembrava de Deus. Com o tempo fui conhecendo pessoas que freqüentam as mais diversas igrejas e são absolutamente sem caráter, por isso nunca mais me interessei por nenhuma. Sempre respeitei, obviamente, mas me é indiferente.
Não tive e não tenho certeza alguma sobre coisa nenhuma. A própria bíblia diz: "em parte conhecemos e em parte profetizamos. Porém, quando vier o que é perfeito, o que está em parte será aniquilado".
Foi há pouco tempo que descobri a liberdade de escolha de todas as pessoas, por isso aprendi: há liberdades individuais que ferem a liberdade dos outros. O contrário disso – a consciência e o amor ao próximo, à liberdade do próximo – na minha opinião se chama Cristianismo. Aprender isso foi uma espécie de ‘reconciliação’ com Deus.
As coisas ruins que aconteceram na minha vida foram erros meus. Escolhas erradas. As coisas ruins não acontecem para sermos punidos ou testados. O teste se dá na escolha. Tudo são escolhas, mesmo a felicidade. No entanto, algumas coisas exigem bastante paciência.
(Parágrafo pra reflexão: não sei como coisas ruins podem acontecer com uma criança, por exemplo. É inconcebível uma criança ser maltratada, passar fome, sede... ela não pode ter escolhido isso. Então quem escolheu? Isso sem falar nos milhões de miseráveis pelo mundo afora...)
Confesso que entre a felicidade simples e a angústia de querer saber mais que o necessário, escolhi a segunda para muitas coisas.
Não tenho medo da morte. Mas a hipótese de ficar sem as pessoas que amo me é absolutamente apavorante. Não há fé que entenda a perda de uma pessoa amada. Haverá sempre uma revolta, mesmo que momentânea, contra Deus.
Sem dúvidas, Jesus foi uma das pessoas mais maravilhosas que existiu. Tanto foi um ser humano, que disse na cruz: meu pai, meu pai, por que me abandonaste? (citado em Mateus e Marcos como Eloí, Eloí, lemá sabactáni?)*. O maior dos homens teve dúvidas, quem sou eu para ser diferente?
Talvez querendo ser a ovelha desgarrada pra chamar atenção, durante muito tempo fiz questão de seguir o ‘caminho errado’ – e essa coisa de ‘caminho’ varia de pessoa pra pessoa. Fiz coisas que não sei como consegui voltar.
Continuo rebelde, revoltado com muita coisa. Também é uma escolha: nunca vou me conformar. Isso me torna um pouco infeliz, é fato. Mas ultimamente sinto uma paz que não sentia há tempos. Desisti da busca pretensiosa de um ‘conhecimento de Deus’, e passei a ver nalgumas coisas presentes e passadas um certo amor de Deus.
Sempre me pergunto se estou errado, se preciso provar para alguém o que sinto com relação ao mundo, com relação a Deus. Acho a fé fundamentada religiosamente uma das coisas mais perigosas do mundo - tanto quanto o ódio, vide os conflitos no Oriente Médio. Diz a bíblia que a Fé é capaz de mover montanhas. Hoje o que mais vejo é a Fé utilizada para julgar e excluir.
Não acredito no Deus do qual essa Fé se apropriou.
Não tenho dúvidas de que preciso de uma proteção e uma força que eu não conseguirei sozinho, e não tirarei da Filosofia ou da Literatura. Não busco respostas para perguntas complicadas (ainda que elas se façam quase que inconscientemente), mas sim fazer da minha vida algo que justifique, ao menos, eu ter saúde e sabedoria o suficiente pra ter escrito as coisas que escrevi – por menos ‘sábias’ que essas coisas sejam.
Se eu me considero um "homem de Deus"?
Sim.
Mas ainda assim, diante das Injustiças que ocorrem no mundo, faço ecoar as “Vozes d’Africa” escritas por Castro Alves:

“Deus! Ó Deus, onde estás que não respondes?!
Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes,
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito
Que embalde, desde então corre o infinito...
Onde estás, Senhor Deus?!...”

Nada me tira o direito de pensar, de cobrar, de perguntar, de querer mudar o mundo - mesmo quando essa mudança se faz somente dentro de mim.

Fé não é silêncio, Fé não é preconceito, Fé não é julgamento, não está nas roupas que visto, nas músicas que ouço, nos livros que leio, nas Igrejas que não freqüento, nas orações que não sei fazer.

Só eu e Deus sabemos a dor e a delícia de dizer, sentir e escrever essas coisas. Ninguém mais.

*Na época do meu querer-ser-ateu li muita coisa da Bíblia e um livro de apócrifos. Na época esse trecho me marcou muito, e lembro de tê-lo utilizado no debate duma aula de filosofia sobre religião.

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